Cartórios e blockchain: a nova era dos testamentos
A popularização das criptomoedas e a digitalização da nossa vida trouxeram novos desafios, especialmente quando falamos sobre herança digital. Muitos brasileiros estão acumulando patrões significativos nesse universo virtual — seja por meio de carteiras digitais, contas em redes sociais ou arquivos na nuvem. Porém, muitos se esquecem de um detalhe crucial: como esses bens serão passados aos herdeiros após a sua morte.
No Brasil, a legislação ainda é um pouco escassa nesse campo, e iniciativas têm surgido para garantir que a sucessão de bens digitais seja feita de forma segura. Um exemplo interessante é a startup Absense, que lançou uma plataforma de testamento digital baseada em blockchain. Vinicius Chagas, um dos sócios, comenta que a ideia é facilitar todo o processo sucessório, tornando-o acessível e livre de complicações desnecessárias.
“Criamos uma plataforma intuitiva que permite ao usuário criar e editar informações em tempo real, sempre respaldada pela tecnologia blockchain”, explica Chagas. Além disso, o sistema respeita as regras do testamento particular que estão de acordo com o Código Civil brasileiro.
Testamento Digital
Esse movimento no setor privado reflete também o avanço do e-Notariado, que permite a realização de atos jurídicos online. O Colégio Notarial do Brasil já fez mais de 1,7 milhão de registros, incluindo testamentos e inventários, e neste ano, registrou mais de 8 mil Diretivas Antecipadas de Vontade, que são uma espécie de testamento vital, todos com base em blockchain.
Para Giselle Oliveira de Barros, presidente do CNB/CF, o crescimento na procura por esse tipo de serviço indica uma mudança cultural importante. “O Testamento Vital permite que o cidadão continue exercendo seu direito sobre o próprio corpo e tratamento”, afirma ela.
Algumas exchanges, como a Binance, também estão começando a oferecer funcionalidades de herança digital. Após atualizações recentes, a plataforma passou a contar com uma opção de contatos de emergência e herança automatizada, garantindo que os familiares possam acessar os ativos em caso de falecimento do titular da conta.
Isso tudo se torna ainda mais relevante quando se considera que, anualmente, cerca de US$ 1 bilhão em criptoativos ficam retidos nas exchanges após o falecimento de usuários. Somente na Binance, estima-se que até 200 mil usuários possam falecer acidentalmente todos os anos.
A importância do planejamento
Essa discussão sobre herança digital envolve mais do que tecnologia; é um delicado equilíbrio entre segurança, acessibilidade e questões legais. A gente sabe que os sistemas precisam garantir que apenas os herdeiros legítimos tenham acesso aos ativos, evitando fraudes.
Andrey Guimarães Duarte, vice-presidente do Colégio Notarial do Brasil em São Paulo, alerta: “Estamos lidando com ativos que podem não ter registros bancários e dependem exclusivamente de senhas e chaves privadas.” Se a pessoa não deixar instruções claras, esses bens podem simplesmente desaparecer.
É preciso lembrar que, apesar do surgimento de plataformas digitais, essas designações não têm validade legal no Brasil. “O que é feito em uma plataforma pode ter efeito interno, mas não substitui um testamento ou prevalece sobre os herdeiros legais”, explica Duarte. Qualquer transação fora do inventário ou testamento válido pode ser contestada judicialmente, especialmente se envolver herdeiros necessários, como filhos ou cônjuges.
Testamento Público é a solução
Por isso, Duarte recomenda o uso de testamentos públicos ou cerrados feitos em cartório. Esses documentos servem como um mapa jurídico do patrimônio digital. O testador pode especificar quem deve receber o quê e como acessar esses ativos. Isso é especialmente crucial no caso das criptomoedas, já que a perda da chave privada significa a perda definitiva do bem.
Além do lado financeiro, a herança digital envolve valores afetivos e identitários. Contas em redes sociais, arquivos de fotos e textos são parte da memória da família, e é importante que tudo isso tenha uma direção clara. “O testamento dá aos titulares a chance de decidir o que fazer com seus perfis, se devem ser encerrados ou memorializados”, complementa Duarte.
A falta de regulamentação e suas consequências
Outro ponto importante é a ausência de regulamentação específica sobre herança digital no Brasil. Enquanto isso, os cartórios têm um papel fundamental em oferecer segurança jurídica. “O notariado brasileiro pode formalizar a vontade digital das pessoas e transformar algo informal em uma declaração formal e protegida por lei”, explica.
Ignorar esse planejamento pode trazer problemas concretos. Sem a documentação adequada, herdeiros podem enfrentar disputas variadas, especialmente quando apenas um deles tem acesso à carteira digital ou quando não há qualquer prova dos ativos.
Duarte ressalta que o testamento não deve ser visto apenas como algo para idosos ou pessoas com grandes bens. “Qualquer um que tenha patrimônio digital, como investidores em criptomoedas ou criadores de conteúdo, deveria considerar o testamento como parte de sua vida financeira.”
Atualmente, um projeto de lei na Câmara dos Deputados busca regulamentar a inclusão de itens virtuais em testamentos, o que poderia abranger até avatares de metaverso. O deputado Elias Vaz destaca que, com a digitalização da vida, uma parte significativa do patrimônio de muitos está em espaços virtuais, e a falta de um meio eficaz para dispor desses bens faz com que muitos se percam após a morte.